Mitos gramaticais: como identificar e combater?

“Há dias atrás”, “junto com”, “a si mesmo”… muita gente pensa – e até defende – que essas e outras expressões estão erradas. Mas isso não passa de um mito gramatical. Quem afirma é Gabriel Lago, professor de Língua Portuguesa e revisor de texto, que tem se destacado por desmistificar regras inventadas e interpretações equivocadas sobre o uso da língua portuguesa. 

Em entrevista exclusiva, ele explicou por que expressões tidas como incorretas são, na verdade, legítimas e respaldadas pelos melhores gramáticos e escritores. Lago também abordou a ideia de que “irá + infinitivo” não deve ser usada no futuro e mostrou como essa condenação não se sustenta diante do uso real da língua, citando até Machado de Assis. 

Para ele, a chave está em consultar fontes confiáveis e abandonar o foco exagerado no “certo ou errado”. Seu método consiste em levar os alunos diretamente às grandes gramáticas e obras literárias, ajudando-os a enxergar a riqueza expressiva do português. Confira abaixo a entrevista completa!

Mitos gramaticais: entrevista com Gabriel Lago

Os principais mitos gramaticais

Clube do Português: Você frequentemente aborda mitos gramaticais em suas redes sociais. Poderia compartilhar alguns dos mitos mais comuns que as pessoas ainda acreditam?

Gabriel Lago: De fato, há muitos! Entre os mais comuns está a mania de ver como puramente incorretas (sem margem para discussão) expressões supostamente redundantes como “há dias atrás”, “junto com”, “certeza absoluta”, “para mim, particularmente”, “a si mesmo”, “como por exemplo”, “já não mais” etc. 

Também há outros tipos de condenações sem fundamento, como achar que “onde” só deve ser empregado para se referir a lugares concretos, ou achar que “possuir” só deve ser usado no sentido de propriedade, posse mesmo, repudiando o uso mais genérico, sinônimo de “ter”.

Futuro com “irá + verbo no infinitivo”

Clube do Português: Há uma crença de que a construção “irá + verbo no infinitivo” não deve ser utilizada para indicar futuro. Qual é a sua opinião sobre essa regra?

Gabriel Lago: Mais um mito gramatical tirado sabe-se lá de onde. A língua portuguesa sempre nos dá possibilidades diversas de expressão, de modo que podemos empregar diferentes recursos para dizer a mesma coisa. 

Uma ação futura pode ser descrita com o verbo no futuro do presente, com a locução “vai + verbo no infinitivo” ou com a locução “irá + verbo no infinitivo”. Todas essas opções estão corretas e não são repudiadas pelos melhores gramáticos. Machado de Assis já escreveu numa de suas obras: “Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o castigue…”

“Junto com”: certo ou errado?

Clube do Português: Você poderia explicar por que a expressão “junto com” não é redundante, apesar de algumas pessoas acreditarem que seja? É mais um dos mitos gramaticais?

Gabriel Lago: Antes de tudo, uma observação importante: ainda que determinada expressão seja tecnicamente redundante, isso não significa que esteja incorreta e não deva ser usada. A redundância não é má nem errada por si mesma

Há redundâncias (isto é, repetições e reforços de sentido) expressivas, cristalizadas na língua, até mesmo incorporadas de tal modo que nem sequer são percebidas (como a contração “comigo”, cuja etimologia traz partes repetidas desde o latim). 

Dito isso, a expressão “junto com” está entre aquelas cristalizadas em nossa língua: é verdade que poderíamos simplesmente usar o “com” sozinho (“Fulano vai com sicrano”), porém a adição do “junto” reforça a informação e está presente em nossos melhores escritores, sem nenhum estranhamento: “Fulano vai junto com sicrano”. O gramático Cegalla já afirmou que a construção é tão velha quanto Camões.

“Ele” e “lhe” só para pessoas?

Clube do Português: Existe um mito de que os pronomes “ele” e “lhe” devem ser usados apenas para pessoas. De onde surgiu essa ideia e qual é a realidade gramatical?

Gabriel Lago: Segundo o professor e gramático Fernando Pestana, alguns autores (que eu chamaria de puristas e mais tapados para as sensibilidades do idioma), como Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante, afirmam que o pronome “lhe” só substitui pessoas. 

Contudo, ainda segundo Pestana, autoridades de peso pensam diferente: Rocha Lima, Bechara e a própria Academia Brasileira de Letras. Ademais, o uso de “ele” e “lhe” para indicar objetos, animais, fatos, eventos etc. aparece nas melhores gramáticas e nos melhores escritores, então não vejo qual seria o fundamento para a restrição. 

Será que estão confundindo português com inglês?

Clube do Português: Como professor de língua portuguesa, quais estratégias você utiliza para ajudar seus alunos a desaprenderem regras gramaticais equivocadas que foram internalizadas ao longo do tempo?

Gabriel Lago: Uso o mesmo método que, em primeiro lugar, fez com que eu mesmo descobrisse todos esses mitos gramaticais e passasse a perceber que nem tudo o que se ensina por aí é verdade: ir direto às melhores fontes

Se ouço ou leio qualquer lição suspeita, corro para os manuais de gramática e para os grandes escritores literários: algum gramático de peso confirma essa lição? Ou, pelo contrário, os gramáticos aparecem usando a expressão condenada e até mesmo abonando-a de forma explícita? Os escritores também usam essa expressão sem receio? 

Se os bons manuais e bons escritores não veem problema na expressão condenada, então só me resta concluir que a lição é arbitrária. 

São essas mesmas fontes que entrego aos meus alunos, a fim de que eles vejam por si mesmos o fato da língua. Além disso, tento fazê-los ver que uma abordagem concentrada nas possibilidades expressivas é muito melhor do que focar apenas o “certo vs. errado”.

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