“Escrever com IA não é escrever da forma como escrevemos até hoje. Você é mais um corretor de redação do que um escritor.” Essa reflexão é de Rafael Censon, professor, escritor e copywriter, sobre os impactos da inteligência artificial no processo de escrita.
Com longa experiência como professor de português, inglês, francês, latim e espanhol, Censon tem um olhar afiado para a linguagem sobre a influência do uso da tecnologia no modo como nos expressamos por meio das palavras.
Nesta entrevista ao Clube do Português, ele reflete sobre como o uso irrefletido de ferramentas como o ChatGPT pode minar a autoconfiança de quem escreve, criando uma dependência que enfraquece a autonomia criativa.
Para ele, o ato de escrever continua sendo um exercício fundamental de pensamento — algo que exige intenção, presença e forma.
Censon propõe enxergar a produção textual como uma espécie de academia para a mente: uma prática regular que nos ajuda a pensar melhor, viver melhor e até envelhecer melhor.
Além disso, ele aponta o “gosto” como a habilidade-chave da próxima década — o filtro essencial para separar o que vale a pena do que é só ruído em meio à avalanche de conteúdo gerado por máquinas.
Confira abaixo a entrevista completa!
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ToggleImpactos do ChatGPT na autoconfiança de quem escreve
Clube do Português: Como o uso irrefletido do ChatGPT, e de ferramentas de IA em geral, impacta o processo de escrita? Como ele afeta a autoconfiança do escritor?
Rafael Censon: Escrever com IA não é escrever da forma como escrevemos até hoje. Você é mais um corretor de redação do que um escritor. Quando você dá aulas de redação, você dá o tema, o contexto, argumentos possíveis, etc., e o aluno entrega o texto para você corrigir.
Em nenhum momento o professor acha que escreveu o texto. Com a IA essa separação desaparece. A pessoa acha que ela escreveu com IA, mas, na maioria das vezes, a contribuição dela foi muito pequena.
Esse uso irrefletido é que mina a confiança do autor. Ele já não se sente seguro de escrever nada sem antes dar um “check” com a IA. Tem suas vantagens, claro. Principalmente as gramaticais.
Porém, à medida que você passa a pedir sugestões, que muitas vezes escondem apenas a insegurança do “me garanta que esse texto está bom”, você começa a se perguntar se sabe realmente o que está fazendo.
É como o Waze. Ele está te mandando para um outro caminho, e você está vendo que o caminho é por ali. Toda vez que você prefere o Waze aos seus olhos, você perde a sua agência, seu poder de iniciativa.
Não é que eu queria dirigir com mapas de novo. Mas é importante lembrar que toda nova tecnologia muda também a pessoa que a usa e nem sempre para melhor e que uma IA não lê da mesma forma que uma pessoa leria.
Escrever para manter a forma
Clube do Português: Como resgatar o valor do processo da escrita em um mundo que quer tudo pronto e de imediato?
Rafael Censon: Tentando usar a escrita como um tipo de academia para a mente. Criamos exercícios para nos “mantermos em forma”. Eles parecem ridículos e artificiais, mas num mundo artificial ser ridículo é a coisa mais natural.
Sem esse uso proposital da escrita (mesmo que você possa fazer mais rápido com IA), você perde todos os benefícios que ela pode oferecer. É a diferença entre lipo e dieta. Só uma altera a pessoa, porque altera os hábitos.
Não é difícil convencer as pessoas de que elas estão ficando mais idiotas (bom, elas nem conseguiriam contra-argumentar mesmo). Mas um hábito é uma coisa difícil de criar.
Se você faz exercícios físicos para envelhecer melhor, talvez deva fazer exercícios de escrita pelo mesmo motivo. Como uma forma de se preparar melhor para a morte, meditando mais sobre a própria vida.
A escrita te obriga a viver por alguns minutos no presente e desacelera o tempo para você o analisar. Tente escrever 30 minutos por dia por conta própria e você vai ver como a sua vida vai mudar, simplesmente porque agora você parou para pensar nela de forma ordenada e intencional.
Os profissionais do texto acham que porque eles escrevem o dia inteiro como trabalho não precisam fazer esse tipo de exercício autoimposto. Só que assim eles escrevem apenas quando são pagos para isso e quando outra pessoa os obriga (não parece muito… IA?).
O papel do gosto na era da Inteligência Artificial
Clube do Português: Você defende que o gosto será a habilidade mais importante da próxima década. O que exatamente é “gosto” para você e como a gente pode cultivá-lo?
Rafael Censon: Ele é importante por dois motivos. O primeiro é prático, e sua causa é a abundância material. Isso está na própria origem das preocupações em relação ao “gosto” como distinção e julgamento estético e moral.
A ideia de gosto surge como uma preocupação no século XVIII entre os ingleses devido à abundância material que a Revolução Industrial estava permitindo.
Por isso, a história do gosto está entrelaçada aos conceitos de luxo e consumo. Quando George Coleman publicou “The Connoisseur”, o luxo era a “maior questão social” na Grã-Bretanha do século XVIII. Havia uma preocupação genuína de que o luxo desenfreado levaria à queda do Império Britânico.
E.J. Clery, professor de Literatura do Século XVIII na Universidade de Southampton, questiona se “o progresso material resultará em luxo, efeminação e declínio?”
Essa é uma questão importante, porque, à medida que fica muito fácil produzir qualquer coisa (imagens, vídeos e textos, mas também sapatos, computadores e algoritmos), a capacidade de discernimento estético se torna não apenas um diferencial social, mas uma necessidade prática: como eu sei o que é bom?
É tanta coisa para avaliar que eu não sei não só ONDE ou pelo QUE procurar (falta de repertório), mas também não sei como avaliar o que encontrei.
Quando uma IA gera 40 imagens diferentes em 10 segundos para o seu prompt, como você escolhe qual é a “melhor”? A reclamação mais comum entre os marqueteiros no mercado digital na hora de contratar alguém é “falta de senso estético”. Falta de gosto, em suma.
O outro motivo é que o “gosto”, aquilo que consideramos adequado e correto, teve até pouco tempo seus reguladores; pessoas e instituições que serviam como modelos e juízes.
A palavra “gosto” vem do francês “goût”, que originalmente denotava o sentido relacionado ao sabor, geralmente de alimentos. Assim como “sabor” e “saber”, parece que metáforas digestivas caem muito bem para o processo de conhecimento na época em que era gostoso saber algo.
O termo ganhou popularidade no século XVII durante a Querela dos Antigos e dos Modernos, um debate acirrado sobre arte e literatura na França entre, como o nome sugere, tradicionalistas e “modernistas”.
Os Antigos, liderados por nomes famosos como Jean de la Fontaine, François Fénélon e Jean de la Bruyère, defendiam que “ter bom gosto” era saber avaliar o quão clássicas eram as obras de acordo com as origens greco-romanas. Uma obra de bom gosto refletia a tradição literária mais antiga.
Do outro lado, os Modernos, liderados por Charles Perreault, defendiam que as obras criadas sob o governo de Luís XIV eram simplesmente as melhores, porque correspondiam à glória divina do Rei. Ter bom gosto era ter o gosto do Rei Sol.
Essas figuras de autoridade eram muito importantes porque você sabia que estava comprando, agindo e gostando das “coisas certas”, porque no fundo eram as coisas que o rei ou Homero aprovavam.
Parece algo antigo, mas a figura de maior autoridade na alfaiataria masculina no século XX era o Duque de Windsor. Ele encarnava o bom gosto. Museus, revistas e instituições de cultura tinham um papel parecido. Guardar os itens importantes de cultura e educar as pessoas a saberem quais são e até a gostar deles.Ter bom gosto era saber o que é bom (ao menos segundo os modelos da época).
Então, imagine o seguinte: como saber o que é bom quando é fácil produzir quase qualquer coisa?
Por esse motivo, ter o discernimento para avaliar os textos, imagens e produtos num contexto maior, separando o lixo do luxo, é a habilidade mais valiosa num contexto de reprodução barata e rápida.
No entanto, é uma habilidade muito difícil de ser adquirida. É preciso ter repertório, linguagem e conhecer manualmente uma habilidade. Ex: a pessoa precisa conhecer as referências (vai precisar estudar história das artes visuais e escritas). Depois ela precisa aprender a “apreciar” essas coisas. Em último lugar, ela precisa, ela mesma, conhecer profundamente alguma habilidade.
Se ela não tem repertório, não sabe o que é possível; se ela não tem apreciação, não sabe como algo bom se parece; se ela não domina alguma habilidade, não sabe como esse algo pode ser melhorado.
Como usar IA na produção de textos
Clube do Português: Em que a IA pode realmente auxiliar quem trabalha com textos?
Rafael Censon: Buscar referências (se você copiar e colar esse texto da resposta anterior e pedir por referências bibliográficas para estudar mais, é um bom uso).
Multiplicar exemplos dentro de regras (“Meu título é este. Me dê 10 variações em que eu não use a palavra x”).
Fazer e organizar transcrições de aulas e reuniões.
Sugerir soluções verbais para problemas específicos (“gostaria de criar uma aliteração aqui, mas não sei qual palavra usar”).
Acho que esses usos braçais auxiliam bastante, porque você já sabe mais ou menos o que quer.
O caminho para não ser substituído pela IA
Clube do Português: Que tipo de profissionais serão substituídos pela IA? E como não se tornar um deles?
Rafael Censon: A gente entra em um problema aqui. Porque alguns serão substituídos porque as pessoas ACHAM que podem substituí-los. Até verem que não podem.
É a famosa “Falácia do Porteiro”. Acha que a única função do seu porteiro é abrir portas, e isso é um erro. Ele pega seus pacotes dos Correios, conta fofocas, passa informações importantes, te ajuda com as compras.
Não há muitas formas de evitar isso.
Se você disser para um empresário que ele pode faturar a mesma coisa com 70% menos custos, ele não quer nem saber como. Então podemos esperar várias substituições nas áreas mais sensíveis só porque existe uma IA para isso.
Por isso é muito importante não ter uma profissão que “pareça” monotarefa. Quanto mais variáveis e mais contexto, mais difícil é para uma IA te substituir.
Tudo o que puder ser roteirizado num processo mecanizado é arriscado. Ter uma visão holística nunca foi tão importante, porque ser “criativo” ou “estratégico” é o novo tipo de produtividade.
Claro, o mundo manual e físico está praticamente intocado. Mas, mesmo quando for, é possível que o mundo fique dividido entre “orgânicos” e “sintéticos”. É comum que inovações tecnológicas convivam com as suas versões anteriores por bastante tempo antes de se tornarem obsoletas.
O suporte comercial por IA já está acontecendo e vai crescer, mas ainda haverá espaço para o “suporte humanizado”. Criar um negócio 100% feito por gente é bom negócio em alguns nichos. Mas vejo mais como exceções.
Por fim, tudo o que é passado pode retornar como nostalgia. O forno a lenha nunca desapareceu.