Repetir e memorizar não bastam para dominar a escrita. A criança a ser alfabetizada precisa avançar e entender a lógica do sistema, ser desafiada e convidada a refletir sobre as palavras. Até porque escrever exige um processo muito mais complexo e profundo de compreensão dos mecanismos que constituem o Sistema de Escrita Alfabética (SEA).

O SEA nada mais é do que o conjunto de mecanismos que forjam um “escritor” a partir do momento em que ele passa a perceber como funciona esse sistema de representação e a dominar as convenções letra-som.

Essas ideias têm um enorme impacto na prática pedagógica do professor alfabetizador, que precisa propor atividades voltadas para a reflexão e compreensão da lógica que está por trás do sistema de escrita alfabética, para além da decoreba do BA-BE-BI-BO-BU.

Para entender isso, desapegue-se do conceito de códigos, símbolos e “caracteres”. Concentre-se em um conjunto de regras ou propriedades que definem rigidamente como os códigos/símbolos funcionam.

Letramento, sociedade e história

É consenso que o processo de alfabetização não pode estar dissociado do letramento. É necessário que o professor ajude a criança a perceber, conhecer e assimilar o sistema de escrita alfabética “por dentro”.

Afinal, como demonstraram as pesquisadoras Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1979), a escrita não se limita a uma técnica de transcrição de sons em letras. Para elas, se fosse assim, a escrita apenas assemelharia as palavras aos códigos, cuja natureza é serem rígidos demais em termos de interpretação.

O código Braile é um exemplo disso: não há nele espaço para duplo sentido e dupla interpretação. O motivo é que o Braile não estabelece regras de ortografia, que é o mecanismo que permite a um mesmo fonema corresponder a mais de uma letra e a uma letra ter relação com mais de um fonema.

No sistema de códigos, cada sinal equivale a só um fonema, independentemente de como a palavra é grafada em um idioma. E isso, por si só, restringe seu uso a um número limitado de pessoas e/ou especialistas – o mesmo do braile serve para o código de barras, para o código morse e até para a divertida “língua do P”.

Por ser fruto da sociedade, que vai deixando suas marcas ao longo da história, a escrita é muito mais complexa.

O que as letras registram?

Quem quiser se apropriar da escrita alfabética precisa solucionar dois enigmas nada elementares:

  • O que as letras registram?
  • Como elas (e as palavras) criam notações?

Para responder ao primeiro, é preciso dizer se o que as letras notam (registram) é a sequência de partes sonoras da palavra ou as características dos objetos que a palavra designa. A segunda questão exige avaliar se é preciso colocar as letras conforme os pedaços sonoros da palavra – e como se faz isso – ou se não é o caso de apreender que as notações são criadas a partir do tamanho ou das características daquilo que a palavra pronunciada representa.

Descobrir e entender

O princípio de tudo é a criança descobrir e entender que deve escrever com letras. Para qualquer adulto alfabetizado, isso parece óbvio demais. Mas vale reconhecer que não é algo natural; em algum momento da vida, isso também foi aprendido.

O passo seguinte é saber que não se pode simplesmente inventar letras. Na sequência, perceber que elas são diferentes dos números e que precisam ser escritas da esquerda para a direita. Descobertas básicas, mas necessárias para domar o SEA.

Adicionalmente, para dominar o sistema alfabético, o menino ou a menina precisa reconstruir em sua mente as características da própria escrita, ou as propriedades deste complexo mecanismo. Acredita-se que a criança acabará incorporando aos poucos os conhecimentos sobre a língua escrita ao vivenciar práticas de leitura e escrita.

Embora o professor precise conduzir a criança nesse processo, cabe somente a ela desvendar “o enigma”, reconstruindo em sua mente as propriedades do SEA. Nessa trajeto, sua missão é identificar e compreender os conceitos da escrita alfabética. Esse movimento é a chave que abre a porta da escrita (e da leitura) de novas palavras.

Dominar essas propriedades é entender que as letras têm formatos fixos, mas também que a sua orientação espacial pode sofrer pequenas variações, o que acaba produzindo mudanças significativas (caso das letras p, q, b e d). E precisa assimilar ainda que as letras podem assumir formatos distintos (como maiúsculas e minúsculas). Outra constatação relevante é a de que uma letra pode estar repetida em uma mesma palavra e em outras também.

A complexidade do SEA pode ser comprovada pela constatação de outra propriedade: a de que, além das letras, na escrita de palavras, usam-se marcas (acentos) que podem mudar a tonicidade ou o som das letras e sílabas.

SEA e consciência fonológica

No sistema de escrita alfabética, saber o nome da letra não é algo relevante, porque não é pelo nome da letra que se escreve. A base está na sonoridade, na representação através da letra escrita que se faz do som emitido (falado).

Por isso, mesmo que, em última instância, tanto a escrita quanto a fala lidem com a palavra, é importante ressaltar que ambos os processos se dão de modos bem diferentes. A escrita é estabelecida de forma alfabética, ou seja, vai-se letra por letra até culminar na leitura de certa combinação. Já a fala parte da produção sonora silabada (silábica).

A criança precisa passar por algumas etapas para trazer à consciência de que forma ela pode/deve representar a escrita. Ela precisa passar por um processo consciente, estar ativa nisso, e ir se descobrindo a partir de estímulos que são dados a ela.

Não é algo que acontece naturalmente; é preciso ter ferramentas para se apropriar desse significado, perceber que a palavra é composta por sons e que cada um deles deve ser representado por certas letras ordenadas de um modo específico.

Compreender o que se fala (e, portanto, adquirir consciência fonológica), é um passo importante para a apropriação do sistema de escrita alfabética, porque leva a criança a refletir sobre os componentes sonoros da fala e as palavras faladas.

Uma sugestão de atividade para estimular a consciência fonológica é através de parlendas e músicas. A criança entende as palavras que ela está interagindo, faz a observação daquelas que se repetem e consegue distinguir quais são.

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